imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

segunda-feira, 26 de março de 2012

"As Barbas do Imperador" - que livro é este?

(faltou colocar a legenda no primeiro quadrinho, "Luiz da Câmara Cascudo, folclorista". Não vou trocar a imagem porque o programa Blogger não aceita e faz confusão... nunca é demais lembrar: para ampliar, clique com o botão direito e escolha a opção "abrir em outra janela", é melhor do que simplesmente clicar)

Cheguei exatamente no meio da adaptação do "Barbas". Estou finalizando as páginas 55 a 61 (de um total de 120), correspondentes ao capítulo "o Império das festas e as festas do Império".
Significativamente, este meio também é o miolo, a essência do livro. Aquilo que ele é, em substância.

Que tipo de livro é "As Barbas do Imperador"? Não é exatamente um livro de história do Brasil, mas um certo período da história do Brasil - o Império, o longo Segundo Reinado - visto por uma antropóloga.
Para entender esta abordagem, é preciso saber que tipo de coisas os antropólogos reparam.

Vemos no primeiro quadrinho e nas fotografias abaixo Luiz da Câmara Cascudo, antropólogo e historiador do RN (olha os capixabas de novo! veja o post da FIQ de Natal). O folclorista está comentando uma das festas mais populares do Brasil desde os tempos coloniais, e como isso influenciou os fundadores da nossa monarquia a adotar o termo "Império" - tecnicamente, o Brasil não seria império (um conjunto de territórios submetidos a um imperador). Foi, digamos, uma "estratégia de marketing" - o povo cultuava a figura do imperador, na Folia do Divino. "Rei" estaria mais vinculado ao rei de Portugal.


Se o Bonifácio pensou isso mesmo, não sei; mas o Rei também era figurinha fácil nas festas populares, como mostram as festas do rei do Congo, o Maracatu, a Folia de Reis etc.

Lília mostra como a cultura envolve e molda os personagens, que por sua vez também são agentes culturais. É ingênuo supor uma elite que cria símbolos para um povo que passivamente os aceita. Sim, existe este empenho, mas é um recorte muito limitador, que exclui o contexto cultural onde a história se desenrola. Existe um "esforço de marketing" do poder que produz ou reproduz imagens, símbolos e rituais que visam reforçar seus valores (tanto os tradicionais, como os símbolos e rituais da monarquia, como os inovadores, como a face moderna e original do "Império americano", do índio como símbolo, do Imperador culto e protetor das artes e ciências etc); e estas produções oficiais são recebidas num meio que também já carrega simbolismos e mitologias que reforçam a idéia de "rei" com todas as suas conotações (o pai bondoso, o protetor, o fiel da balança, o poder consagrado etc). Ou seja, tem o "feedback" do povo, e também uma atmosfera geral em que todos respiram e usam os símbolos para se comunicar e estruturar a vida coletiva.

A idéia de Rei é tão incrustrada, e conserva uma conotação tão positiva, que até hoje os ídolos populares brasileiros recebem o título de Rei - o "Rei do Futebol", o "Rei da Juventude Brasileira", a "Rainha dos Baixinhos" etc. É uma espécie de "direito natural", um carisma que transforma os outros em súditos.

"As Barbas do Imperador" é um livro de História do Brasil? Também é. A História mostra a sucessão dos fatos, o que aconteceu naquele período, o Império, as causas e consequências. Também temos a história de uma vida, a biografia do nosso personagem no meio disso tudo, o imperador D.Pedro II. Esta é a dimensão histórica, das ações dos governantes, dos outros países sobre o Brasil e vice-versa, as transformações.

E também temos um "recorte atemporal". Isto consiste em imaginar e reconstituir uma época como se fosse um lugar: "no tempo dos romanos", "no tempo dos castelos da Idade Média", "no tempo dos mosqueteiros".
É atemporal porque é como se a maneira das pessoas viverem se estabiliza, os costumes se cristalizam e pessoas diferentes fazem as mesmas coisas. É como se o tempo se tornasse circular. E é assim que vivemos, de verdade: crescemos, envelhecemos, andamos na Linha do Tempo, e também experimentamos a repetição do Tempo Circular: todo ano tem Carnaval, Dia das Mães, Festa Junina, Natal; e ciclos maiores, como Copa do Mundo, eleições. Temos "fórmulas" que regulam a vida de cada um de nós:

O "tempo atemporal" que buscamos reviver na repetição dos ritos (sempre a mesma coisa, embora nunca seja igual...) é próprio das mitologias, da literatura de ficção. É como o começo de "Memórias de um Sargento de Milícias" que se passa no Rio de D.João VI: "Era no tempo do Rei..." . Não sabemos exatamente em que ano é, se D.João ainda era Príncipe Regente, ou se estava prestes a deixar o Brasil. Era no tempo do Rei. De vez em quando o entrevemos no palácio, na missa, no beija-mão. São as coisas que sempre aconteciam naquele tempo. "Sempre aconteciam..." As coisas que costuam acontecer, é disto que é feita a "história atemporal".

Mesmo eventos únicos, como o nascimento e a coroação do rei, repetem padrões cristalizados pelas fórmulas sagradas e consagradas, pelos costumes.

Os antropólogos estudam uma sociedade evidenciando suas regras, os padrões de comportamento, os fatores de coesão, suas leis expressas ou não ditas, os tabus etc. Os antropólogos mais antigos faziam descrições quantitativas e matemáticas, segundo o padrão de ciência exata que imperava (pois é, precisamos de uma antropologia da antropologia... * ver PS abaixo). Com o passar do tempo, os estudiosos passam a lançar mão de outros recursos e analogias, "ferramentas intelectuais" como se diz. Gilberto Freyre é um exemplo de antropólogo bastante livre na escolha de métodos de abordagem: para entender um fenômeno social, ele recorre à influência geológica e geográfica, às migrações dos povos, às especialidades profissionais, aos cuidados com higiene e saúde, à alimentação, à vida íntima e sexual, aos cuidados com as crianças...

Enquanto escrevia o parágrafo acima, pensei: não estou confundindo o objeto de estudo com o método? Ora, esta ambiguidade aparece no próprio Freyre e, creio, é próprio da inteligência humana aberta. Quando Freyre menciona um prato da culinária, aquilo é um exemplo que sustenta uma hipótese, e também o meio pelo qual ele busca alcançar compreensão dos valores daquela sociedade. "Casa Grande & Senzala" é um livro que resume 300 anos de Brasil-colônia, não de história, mas de vida - e vida é assim mesmo, feita de coisas grandes e pequenas que acontecem, que "vão acontecendo" - para usar uma forma verbal em que o tempo não caminha apenas inexoravelmente para frente, mas circula, volta ao mesmo lugar de novo e de novo e de novo, como as fases lunares e as estações do ano.

Quando li "As Barbas do Imperador", decidi manter a estrutura do livro tal e qual. Eu poderia ter extraído dele apenas a vida de d.Pedro II, e tentado fazer algo mais parecido com "D. João Carioca". Mas eu quis, e achei viável, que o "Barbas" em HQ tivesse a mesma cara antropológica do original.

E pedi à Lília que me indicasse seus "gurus", uma bibliografia básica de autores que ela respeita. Mandou alguns nomes: Clifford Geertz, Levi Strauss, Malinovski, Sahlins, Evans Pritchard. Eu já tinha lido Levi Strauss (Tristes Trópicos), baixei alguns textos de Geertz. Também segui indicações do próprio Barbas, como o estudo de Curt Nimuendaju sobre os Timbiras do Maranhão. Dei também uma lida em alguns manuais de introdução à antropologia geral, mesmo os mais "quadrados" e cientificistas, digamos, justamente para enxergar com nitidez o estilo de abordagem que caracteriza Lília Schwarcz e a linhagem de pesquisadores na qual se insere, linhagem que se destaca do pano de fundo da antropologia clássica pelo uso mais livre de analogias, comparações e metáforas advindas da crítica literária, das artes e espetáculos etc. Basta ver os outros livros da Lília em que o mundo pictórico (a pintura de Taunay, os anúncios de escravos) e os símbolos de cultura (a biblioteca dos reis) são tanto objeto de estudo como pistas e evidências de algo mais, uma lógica por trás dos símbolos.

Quero dizer, não é apenas a adaptação de um livro - de um "texto" - que estou fazendo, também não é só contar um pedaço da História do Brasil - um "objeto" - mas, sobretudo, procuro mostrar esse objeto por meio de uma metodologia ou abordagem específica - um "olhar" amplo que conecta  diferentes campos e realidades.

Trocando em miúdos, "As Barbas do Imperador"  mostra como uma sociedade no Brasil do século XIX se articulava em torno do "mito do Rei", expresso nos símbolos, artes e rituais, nos atos oficiais e na cultura popular, e como D.Pedro II encarnou - e depois rebelou-se, ou tentou ir contra o símbolo - o Rei numa monarquia tropical sem similares.
E eu quero mostrar como esse livro é.

PS - falei acima de "antropologia da antropologia". Podia ser também uma antropologia da sociologia, ou da micro-sociedade acadêmica. Seria preciso primeiro delimitar esse objeto: essa sociedade é definível por um espaço geográfico, como o campus da USP? Ou por uma rede de relações, que se mantém coesa por uma "cultura acadêmica"? - isto me parece melhor. Qual a sua estrutura social, suas camadas, suas regras de ascensão social, os mecanismos de inclusão e exclusão, os comportamentos incentivados e aceitos; as instituições da vida universitária: o vestibular, o trote, a vida no grêmio, as festas, o boteco; os rituais de escrever uma tese, a defesa, a publicação, a construção de um currículo; a relação orientador-orientando, a linha dinástica dos pesquisadores até o fundador da disciplina; a aquisição de um vocabulário acadêmico, as referências culturais pop, os ícones; as relações desta micro-sociedade com o meio circundante, o jornalismo cultural, os grandes eventos intelectuais de massa, o fascínio do canudo, o prestígio do intelectual em meios não-intelectuais...  Isso dá pano pra manga.

Os três últimos presidentes do Brasil foram um sociólogo, um líder sindical e uma burocrata. Isto deve significar alguma coisa...

3 comentários:

  1. Câmara Cascudo dá uma baita caricatura... Como sempre, uma aula de post, o seu. E que venham as páginas restantes das Barbas! Abração.

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  2. você é rápido, Érico, obrigado. Coloquei um PS depois que você escreveu... abraços,sp

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  3. Rápido e não rasteiro, espero... Suas reflexões dão PM (Pano pra Manga). E dão PS... abraços também.

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