imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

sábado, 29 de setembro de 2012

"Isto fala!"

 
D.Pedro II foi interpretado neste filme americano de 1930, misto de palestra e documentário:
 
A interpretação é meio canastrona, mas não posso deixar de sentir um orgulho patriótico boboca ao ver que eles fizeram uma caracterização cuidadosa do imperador brasileiro...
 
(revendo o link original do filme, no site de AT & T, vejo a informação de que a parte da palestra foi feita pelo próprio assistente de Graham Bell, mr. Watson, gravada exatamente 50 anos depois da descoberta do telefone e do encontro com d. Pedro. Então, os artefatos que ele segura são os que ele próprio manufaturou. Sabendo disso, a palestra inicial algo monótona ganha um interesse maior).
 
Abaixo, a minha recriação.
O encontro se dá na Exposição da Filadélfia, no centenário da Independência dos Estados Unidos, em 1876. D.Pedro é o convidado de honra e abre a exposição junto com o presidente Ulysses Grant, general que comandou as forças nortistas na Guerra da Secessão.
 
 
A comissão julgadora ia passando pelo estande de Graham Bell sem dar maiores atenções, quando D.Pedro - que havia conhecido Graham Bell em Boston, em sua escola para surdos-mudos - pára para cumprimentar o inventor e faz o primeiro teste público do telefone, chamando a atenção dos investidores.
 
(*queria saber desses malditos reformadores ortográficos, como se pode distinguir este "pára para cumprimentar" sem o uso do acento agudo na terceira pessoa do singular do verbo "parar"... quem teve esta brilhante idéia? ).


Esta é uma réplica do aparelho usado em 1876. Do original só resta uma parte.
No filme de 1926, Graham Bell às vezes tira o funil acústico para falar mais perto do receptor.
 

E abaixo, algumas cenas do filme. Aos 5 minutos já aparecem as cenas com d.Pedro.
Eu achei muito legal, especialmente depois de já ter feito outros aspectos da Exposição.

O ator é engraçado, tem gestos largos e generosos, teatrais, como um monarca europeu em férias. Mais fanfarrão do que o d.Pedro real, certamente, mas gostei da caracterização: mostra que os realizadores consultaram fotografias e documentos, com desejo de retratar com fidelidade os personagens (não tentaram retratar a "idéia" de um imperador latino-americano, com elementos tropicais... sem dúvida, tentaram se aproximar da imagem real de d.Pedro). E, se a dramatização contou com a consultoria do mr. Watson real, ele também pode ter visto e conversado com o imperador mais de uma vez.

Fiquei com a impressão de que a dramatização foi feita primeira em filme mudo, e depois com o advento do som, algumas cenas mais em close, com os personagens conversando, foram adicionadas. Notei algumas diferenças de cenário entre o plano mais geral, e o plano médio em seguida quando os atores falam. Mas foi feito com cuidado.

Não percam o filme, é bem curioso.
http://www.youtube.com/watch?v=eQd3H8AmtP0&feature=related

Fiquei com vontade de rever o d.Pedro interpretado por Cláudio Marzo no filme "Xangô de Baker Street", de 2001, do livro de Jô Soares; também Sérgio Brito nos especial da Globo "O Natal do Menino Imperador" de 2009 (um primor de absurdos históricos).

http://www.youtube.com/watch?v=lRqK4raKsqA
http://www.youtube.com/watch?v=xbiDHiqj_Bk

Este filminho americano de 1930 foi mais cuidadoso que a Globo com a História do Brasil.
Novidade...




segunda-feira, 16 de julho de 2012

Oficina de Personagem na Quanta - julho de 2012

Mais uma vez, a QUANTA Academia de Artes, em São Paulo, promove seus cursos rápidos e oficinas de férias.
No sábado 28 de julho, acontecem as oficinas de Júlia Bax e Rod Reis (lotados, mas não custa tentar uma vaga...), Baptistão, Ivan Reis, André Diniz e este que vos tecla.

Eis os links:
http://www.quantaacademia.com/escola/cursos_de_ferias.htm
http://www.quantaacademia.com/escola/cursos_de_ferias_personagem.htm

Minha oficina será sobre "criação visual de personagens", o que para mim tem um significado muito amplo. Eu procuro recorrer à experiência de contar histórias por meio de atores/personagens desde o teatro grego (embora ache as montagens de teatro grego muito chatas... mas já li "Édipo Rei") e aos personagens míticos, imemoriais, das lendas e dos contos de fadas - batizados pela terapia junguiana de "arquétipos". É simplesmente um banco de dados de tipos humanos.

O que é um personagem? É qualquer figura capa de contar uma história, representando... Até uma luminária pode atuar - se por seus movimentos, seu timing, conseguir expressar desejos, intenções e até pensamentos e sentimentos. Não preciso provar isto, todo mundo já viu...

Mas um personagem não é qualquer coisa: um modelo numa passarela, ou um manequim, não é personagem (a menos que seja uma história sobre manequins...). O que quero dizer é que um personagem - no nosso caso, um personagem desenhado, ou um ator já caracterizado, como o Lima Duarte vestido de Zeca Diabo - é uma PESSOA, um ser com personalidade, ainda que seja uma pedra ou uma minhoca: é alguém capaz de contar uma história, que contém uma história potencial, mesmo que ninguém a tenha escrito ainda.

É fácil olhar para certas figuras que só vivem como merchandising (lembro sempre dos mesmos exemplos da moda, Hello Kitty e Bad Boy), mas que têm uma emoção dominante, um vetor, uma direção, desejos, atraem certas coisas e repelem outras. É como se elas tivessem um halo em volta delas, um círculo de possibilidades, de histórias possíveis (e ao mesmo tempo, indicam o que não tem nada a ver com elas).

A oficina será, como as outras que dei, um treino de sensibilidade para perceber essas coisas, e usar essa percepção no desenvolvimento de tipos a partir de idéias, sentimentos e formas básicas.

A parte mitológica será só por alto, porque é um estudo que exige muito tempo; mas darei algumas noções, até porque é uma linguagem que eu conheço bem e uso bastante nos meus personagens. Nos dois desenhos que abrem este post, as duas figuras (o ministro Marquês de Olinda e o mordomo Paulo Barbosa) mostram nitidamente em seus corpos e na postura que papéis são capazes de desempenhar. Cada um tem um "tônus vital" (energia) diferenciado, uma maneira própria de dar direção à sua vida, de organizar suas coisas, portanto, cada um tem seus valores e prioridades.

No centro de cada personagem tem alguns valores que o norteiam (ou desnorteiam...). Tem um núcleo, uma idéia central, digamos assim. Mas nós não vemos "idéias" flutuando por aí - vemos pessoas e vemos as suas ações. É isso que um personagem tem que passar, a coerência entre o que ela é e o que ela faz. Como eu batizei um antigo curso de caricatura que eu dei, "quem vê cara, vê coração".

Isto me faz lembrar de personagens que morreram, ou ficaram opacos, porque deixaram de ser atores para virar apenas símbolos - não de suas personalidades, mas de uma marca. Lembro de umas ilustrações do Fred Flintstone, mais novas, feitas apenas para merchandising. Ele estava naquela pose boba de garoto-propaganda, em vez de expressar sua própria personalidade tosca e verdadeira. Vou ver se me lembro de incluir estes contra-exemplos na minha oficina.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mas esse tal de Agostini era bom mesmo

 Este é um quadro de meia página, na página 72 de "As Barbas...", que era para ser bem mais simples (veja o layout no final do post), mas, ao examinar a gravura de referência, tão rica e cheia de detalhes, não resisti em seguir mais de perto a cena desenhada por um contemporâneo.

E mesmo assim, a gravura original é insuperável, na variedade de tipos populares e situações paralelas (repare no sujeito no pico do telhado, de guarda-chuva). Não coloquei tudo para dar espaço a algumas legendas, mas dava vontade.
(clique com o botão direito do mouse para ampliar em uma nova janela, é o melhor meio de visualizar).


Não sei se é do Ângelo Agostini. Será? No crédito do livro da Lília, vemos apenas a indicação do acervo (Museu Imperial de Petrópolis - MIP). Também não achei no livro do Maringoni. Mas acredito que seja dele, pelo desenho seguro da multidão, pelo contraste entre os planos, e a letra não destoa.

Abaixo, como vêem, o layout era mais simples.

Como na página seguinte haverá vários dons Pedros posando para fotografias, abri mão deste primeiro plano do monarca, tanto para mostrar a vivacidade do povo nas ruas (o pessoal realmente subia nos telhados para ver desfiles e cerimônias, pensam que não? Desde Debret se registra isso; e esses trepados nas árvores podem ser estudantes), como para homenagear este talvez Agostini. Voltaremos a ele.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

UM SONETO PARA D. PEDRO


A PEDRO DE ALCÂNTARA

Rei-filósofo de alma taciturna e fria,
monarca por Tupã e Minerva abençoado
de tórrido país e povo apimentado,
mais a Atenas que Roma a índole pendia.

Cumpristes entre nós de Platão a utopia
de um Estado ideal por sábios governado.
Pesa-vos a coroa; mais vos conviria
de Péricles e Marco Aurélio o douto fado.

Às Artes e ao Saber destes o vosso abrigo;
haverdes sido mestre, professor ou lente
era o que mais desejaríeis, na verdade...

Mas ainda há tempo: perdoai-me, gesto insolente,
a pretensão de ser de Vossa Majestade
o mais modesto aluno, súdito e amigo.

spacca, 22/06/2012

domingo, 8 de abril de 2012

O CRONISTA ARTUR DE CARVALHO (1962 - 2012)

Despretensiosamente, como sempre, Artur escolheu morrer na mesma semana em que nos deixaram Chico Anísio e Millôr Fernandes, só para ficar à sombra dessas duas sumidades do humor, a quem ainda devo prestar as respectivas e merecidas homenagens.


A despretensão não é necessariamente sinal de modéstia, falta de auto-estima ou timidez; no caso deste discreto gênero literário, a crônica, a despretensão é o ingrediente indispensável: o cronista é o observador por excelência, aquele que assiste o mundo passar e registra seu espanto, sua perplexidade.

Porém, quem conheceu o Artur, sabe que sua presença e sua voz não tinham nada de discretas...
Artur era do interior de SP (Campinas) e mudou-se para o interiorzão (Votuporanga); foi ser sócio do cunhado numa pizzaria e, como relata em seu livro "O incrível homem de quatro olhos", quis proporcionar à filha Gabi uma infância parecida com a sua, de brincar em ruas gostosas e despreocupadas, que Campinas já não podia oferecer. Para os arrivistas e loucos pelo sucesso, que buscam brilhar nas capitais, esse é um movimento difícil de entender - é como se Chico Anísio tivesse ido do Rio para Maranguape e Millôr de Ipanema para o Méier.
(ilustração de Artur)

Mas voltemos à crônica. A esse recuo físico, providencial, da metrópole para a província, corresponde um recuo do observador. O que estou querendo dizer é que a crônica, escrever uma crônica, é um modo de entendimento, um jeito especial da inteligência captar a realidade - não um modo impositivo, controlador, mas o de uma inteligência aberta às coisas e pessoas mais variadas. O cronista não escolhe assunto com muito cuidado, o assunto é o que aparecer na frente - é o que alguém falou, é uma idéia que ele teve, é uma moda, é o que todos estão falando no momento ou algo que só ele está prestando atenção. O cronista é um cara atento para ser escolhido por um assunto.

E com que autoridade aborda um assunto o cronista? Nenhuma! Até Machado de Assis, que além de gênio da grande literatura também foi cronista de primeira, nas crônicas escrevia com a falta de cerimônia de um passageiro de bonde puxando conversa com o vizinho do lado.

E, no entanto, apesar da atenção do cronista estar generosamente aberta a todos os assuntos, a crônica resulta única, coesa, bem amarrada como toda obra literária digna do nome precisa ser, e esse amarramento vem da sinceridade com que o cronista se coloca na crônica, como observador. Sinceridade é outro ingrediente fundamental da crônica.


(PS - ao reler este post, isto me pareceu mal explicado: como é que a sinceridade pode conferir unidade a um texto? É simples: o observador sincero sempre se inclui na observação; o "eu" possui unidade natural, assim como a existência também possui unidade - nós vivemos no mesmo mundo, não em dois; portanto, ao referir-se sempre às suas memórias com sinceridade, o indivíduo confere unidade ao seu testemunho - o insincero se divide em dois, três etc. Porém, admito: um escritor profissional também possui técnicas e macetes para "amarrar" um texto e botar um término em suas reflexões, por mais fragmentárias que possam ser. O Artur, além dessa capacidade ou treino que qualquer escritor competente possui, ainda tinha, e é isto que estou valorizando aqui, coerência existencial).


Mas, espere aí: uma das marcas do Artur eram as "pegadinhas", mentiras e fingimentos que ele às vezes colocava nos seus escritos - como a crônica em forma de reportagem, que anunciava a descoberta de um homem de quatro olhos, e metade da cidade acreditou. Como, então, falar de sinceridade?

A sinceridade a que me refiro é a de um ser humano falando para outro; consciente do que sabe e do que não sabe. Muita gente escreve em nome de uma verdade hipotética, em nome de uma teoria científica, em nome da "Razão", em nome de uma utopia, da justiça, da História etc. Artur, muito honestamente, falava sempre em nome dele mesmo. E sempre queria conferir se o outro teve experiência semelhante: "sabe quando acontece tal coisa? Então, nessas horas eu sempre acho que xxxx. Não é assim com você?" Parece banal; mas esta é uma atitude rara. Artur tinha o hábito de sempre relacionar opiniões e conceitos com a experiência concreta que ele vivia; de conferir as idéias com a realidade da experiência pessoal. E, frequentemente, ele se deparava com a própria ignorância e confessava: "sei lá". 

"Sei lá" - quanta gente devia confessar, socraticamente, que não sabe o que não sabe? É sobre esse fundo de incerteza que podemos destacar as coisas que sabemos que são boas e verdadeiras. Ateu, nem o ateísmo Artur professava com convicção. A honestidade intelectual o impediu de ser um ateu convicto - ele percebeu que o ateísmo exigia uma certeza negativa impossível de ter. 


A vida é assim, Artur. Como você ironicamente já sabia ao batizar seu segundo livro, "quando você menos espera... PÁ". Conversamos muito pouco, quantos encontros tivemos, uns dez? Quinze?

Haveria assunto para mil conversas. O consolo é que você escrevia como conversava; então, é possível perceber sua presença quando o leio - porque você soube rechear palavras com experiência vivida. Você não foi um fazedor de "textos" - até suas mentiras eram recheadas de vida e verdade.




Foi bom te conhecer, Artur, Deus te guie e te ilumine -  a depender da sinceridade e da auto-confissão, até os ateus merecem o céu.

(seguem três crônicas de Artur de Carvalho, tiradas do seu blog http://arturdecarvalho.wordpress.com/ )

veja também:
TRÊS CRÔNICAS DE ARTUR DE CARVALHO

SOS SOS SOS SOS SOS SOS
(22/11/2011)


Quando uma comissão de países europeus definiu o chamado Código Morse Internacional, incluiu-se um sinal de pedido de socorro, fácil de ser lembrado em situações de emergência mesmo por pessoas com pouco ou nenhum conhecimento de telegrafia. Era uma simples combinação de duas letras, cada uma codificada por três sinais idênticos: três toques curtos para S, três toques longos para O e, novamente, três toques curtos para S, sem pontuação.

Tudo bem. Com esse monte de iPad, iPod, smartphones, computadores e o escambal, hoje em dia, ninguém mais usa telégrafo. Ou quase ninguém. Mas o sinal de SOS pegou, e se tornou uma espécie de ícone, reconhecido por qualquer moleque de dez anos. Bem, outro dia,  folheando uma revista em quadrinhos antiga, fiquei olhando o tal sinal de SOS, desenhado pairando sobre o mar. Uma onomatopéia saindo de um navio prestes a afundar.


E reparei numa coisa que nunca tinha reparado antes. SOS, o sinal de socorro, se escreve exatamente com as mesmas letras que se usa para escrever “sós”.  SÓS de sozinhos, sabe? De solidão. Que vem do Latim “solus” e não tem nada a ver com telégrafo, código Morse ou qualquer coisa assim. Não é extremamente irônico que as mesmas letras, atravessando caminhos tão diferentes, acabem desembocando em significados tão próximos como “solidão”  e “socorro”? Pois não é essa a história de nossa vida? Uma busca incessante por alguém ou alguma coisa que nos ajude a sair desse isolamento ao qual todos fomos condenados?


Outro dia, me peguei rezando. É, RE-ZAN-DO. E rezando um Pai Nosso, daqueles bem clássicos. Seguido de uma Ave Maria. No embalo, acho que rezei quase um terço. Não sei o que é. Talvez seja a idade. Ou esse monte de doença que deu para aparecer em mim, vindas sabe-se lá de onde. A verdade é que, chega uma hora, a gente se cansa e se assusta com essa solidão a que estamos confinados, e Deus é uma idéia excepcionalmente boa para ser menosprezada.


E, apesar da esposa fazer de tudo pela gente, desde cafuné até curativos. Apesar da filha me levar e buscar no emprego, como eu fazia com ela no tempo da escola. E apesar do meu neto aparecer com sorrisos nas horas mais inesperadas, fazendo o restante do mundo simplesmente derreter ao redor dele. Apesar de tudo isso ainda me sinto extrema e extenuantemente só aqui por dentro e, na dúvida, rezar nunca fez mal para ninguém.


Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?


Sei lá. Eu acho que eu tenho algum problema. Segundo todos os maiores filósofos, cientistas, religiosos e até o sapateiro ali da esquina, as grandes dúvidas da humanidade se resumem a essas aí, do título e, quando respondidas, farão da vida do ser humano uma espécie de paraíso sobre a Terra. Pois, para ser sincero, eu acho que são umas perguntas bem idiotas. Acho até que são meio simplórias. Para tentar me explicar melhor, vamos começar pela primeira pergunta. Quem somos?


Oras bolas. Nós somos nós, ué. Não sei o que é que esse pessoal fica arrumando tanta complicação nessa história. Se você não sabe nem quem é, ou está com amnésia ou tem sérios problemas mentais. No caso, tomar uns remédios ou algumas sessões com um bom psicanalista devem resolver ou, pelo menos, atenuar o seu problema. E se não resolver também, que se dane. Se você nem sabe quem é, não deve nem saber ler, e se conseguiu aprender a ler, não deve estar entendendo bulhufas do que eu estou falando, e muito menos está preocupado com esse papo-furado de filósofo.


Então, vamos para a segunda questão. De onde viemos?


Olha. Eu sinto muito mas, se com a idade que você está, você ainda não sabe de onde veio, a coisa está realmente meio complicada. Mas eu vou tentar explicar aqui, o mais delicadamente possível, para não chocar a sua natureza inocente. Para começar, a sua mãe e o seu pai não são virgens. Não, não me olhe com essa cara de espanto. Pelo menos uma vez na vida, com toda a certeza do mundo (no caso de você não ser um filho adotivo, evidentemente), seu pai e sua mãe transaram. Isso mesmo, rapaz. Fizeram SEXO. E aí sua mãe engravidou, ficou barriguda e, respondendo à pergunta inicial, foi daí mesmo que você veio. Direto da barriga da sua mãe para o mundo, passando antes por lugares que você nem imagina, mas eu também não vou entrar aqui nesses detalhes técnicos para não deixá-lo ainda mais chocado do que já deve estar.


E agora, para terminar, vamos logo para a terceira e última pergunta que tanto vem atormentando nossa espécie. Para onde vamos?


Olha, se você, caro leitor, for uma morena de olhos verdes, com aí seus vinte e seis, vinte sete anos, nós podemos combinar um cineminha e um jantar para mais tarde. Se não for, eu, particularmente, pretendo ir para a cama e dormir um pouco, que a noite já se faz tarde.


6 coisas que me decepcionaram e que eu não achei nada para colocar no lugar


1- A Esquerda
A Esquerda, como todos sabemos, era uma delícia. Era moderna, era ousada, era honesta e era, acima de tudo, justa. A gente lia sobre os grandes heróis, da história ou da ficção, e todos eles pareciam ser de esquerda também. O Robin Hood tirava dos ricos para dar para os pobres. O Super-Homem lutava pelos fracos e oprimidos. Até Jesus Cristo, oras, se você pensar bem, era meio comunista. Bem, aí a Esquerda assumiu o poder, e a gente viu que eles não eram tão diferentes assim dos outros. E, além do mais, ser de Esquerda hoje não é mais ser da oposição. Minha vida toda eu fui oposição. E para ser de oposição, hoje, eu preciso ser… de Direita?


2- A Direita
Bem, com a Direita eu já havia me decepcionado aos 16 anos de idade, durante o regime militar e tudo o mais, e não vai ser agora, com 49, que eu vou voltar atrás.


3- A Religião
Não dá para acreditar numa religião que acha que só ela está certa. E todas as religiões acham isso. Mas nem é por isso a minha decepção. A minha decepção é ver os caras indo lá, na missa aos domingos, e saindo de lá não dando a mínima para o que ouviram. Pombas, se eles acreditam naquilo que ouviram, deviam sair de lá pregando também. E, se não acreditam, deviam se tornar ateus, como eu me tornei.


4- O Ateísmo
Minha decepção com o ateísmo está acontecendo agora, depois de velho. Eu até que me sustentei bem sendo ateu durante a juventude, mas quando a gente vai ficando velho, vendo a morte cada dia mais de perto, não tem jeito. A gente sempre começa a ter esperança numa vida eterna, ou coisa parecida. Chega até a arriscar uns Pai-Nosso antes de dormir. A gente se sente muito sozinho sendo ateu.


5- A Imprensa
Eu sempre achei muito importante ver jornais, revistas, TV, blogs, ou seja lá de que forma se transmita notícias. Um cidadão tem que estar consciente das coisas que acontecem ao seu redor. Com o passar dos anos, no entanto, a imprensa já não é mais aquela. A imprensa, hoje, luta pela sobrevivência. E, você sabe: um cara faz qualquer coisa para sobreviver.

6- A Ignorância
Deixar de ler, no entanto, também é decepcionante. É só você ficar ouvindo a conversa de dois garotos normais, de 14 anos, para você ver. Eles conseguem conversar durante uma hora e meia no celular, mandar 20 torpedos, entrar no Messenger e, quando você pergunta sobre o que eles estavam falando, eles olham para cima, coçam o queixo, e respondem, meio abobalhados: “Nada”.

Artur de Carvalho, 1962 - 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

"As Barbas do Imperador" - que livro é este?

(faltou colocar a legenda no primeiro quadrinho, "Luiz da Câmara Cascudo, folclorista". Não vou trocar a imagem porque o programa Blogger não aceita e faz confusão... nunca é demais lembrar: para ampliar, clique com o botão direito e escolha a opção "abrir em outra janela", é melhor do que simplesmente clicar)

Cheguei exatamente no meio da adaptação do "Barbas". Estou finalizando as páginas 55 a 61 (de um total de 120), correspondentes ao capítulo "o Império das festas e as festas do Império".
Significativamente, este meio também é o miolo, a essência do livro. Aquilo que ele é, em substância.

Que tipo de livro é "As Barbas do Imperador"? Não é exatamente um livro de história do Brasil, mas um certo período da história do Brasil - o Império, o longo Segundo Reinado - visto por uma antropóloga.
Para entender esta abordagem, é preciso saber que tipo de coisas os antropólogos reparam.

Vemos no primeiro quadrinho e nas fotografias abaixo Luiz da Câmara Cascudo, antropólogo e historiador do RN (olha os capixabas de novo! veja o post da FIQ de Natal). O folclorista está comentando uma das festas mais populares do Brasil desde os tempos coloniais, e como isso influenciou os fundadores da nossa monarquia a adotar o termo "Império" - tecnicamente, o Brasil não seria império (um conjunto de territórios submetidos a um imperador). Foi, digamos, uma "estratégia de marketing" - o povo cultuava a figura do imperador, na Folia do Divino. "Rei" estaria mais vinculado ao rei de Portugal.


Se o Bonifácio pensou isso mesmo, não sei; mas o Rei também era figurinha fácil nas festas populares, como mostram as festas do rei do Congo, o Maracatu, a Folia de Reis etc.

Lília mostra como a cultura envolve e molda os personagens, que por sua vez também são agentes culturais. É ingênuo supor uma elite que cria símbolos para um povo que passivamente os aceita. Sim, existe este empenho, mas é um recorte muito limitador, que exclui o contexto cultural onde a história se desenrola. Existe um "esforço de marketing" do poder que produz ou reproduz imagens, símbolos e rituais que visam reforçar seus valores (tanto os tradicionais, como os símbolos e rituais da monarquia, como os inovadores, como a face moderna e original do "Império americano", do índio como símbolo, do Imperador culto e protetor das artes e ciências etc); e estas produções oficiais são recebidas num meio que também já carrega simbolismos e mitologias que reforçam a idéia de "rei" com todas as suas conotações (o pai bondoso, o protetor, o fiel da balança, o poder consagrado etc). Ou seja, tem o "feedback" do povo, e também uma atmosfera geral em que todos respiram e usam os símbolos para se comunicar e estruturar a vida coletiva.

A idéia de Rei é tão incrustrada, e conserva uma conotação tão positiva, que até hoje os ídolos populares brasileiros recebem o título de Rei - o "Rei do Futebol", o "Rei da Juventude Brasileira", a "Rainha dos Baixinhos" etc. É uma espécie de "direito natural", um carisma que transforma os outros em súditos.

"As Barbas do Imperador" é um livro de História do Brasil? Também é. A História mostra a sucessão dos fatos, o que aconteceu naquele período, o Império, as causas e consequências. Também temos a história de uma vida, a biografia do nosso personagem no meio disso tudo, o imperador D.Pedro II. Esta é a dimensão histórica, das ações dos governantes, dos outros países sobre o Brasil e vice-versa, as transformações.

E também temos um "recorte atemporal". Isto consiste em imaginar e reconstituir uma época como se fosse um lugar: "no tempo dos romanos", "no tempo dos castelos da Idade Média", "no tempo dos mosqueteiros".
É atemporal porque é como se a maneira das pessoas viverem se estabiliza, os costumes se cristalizam e pessoas diferentes fazem as mesmas coisas. É como se o tempo se tornasse circular. E é assim que vivemos, de verdade: crescemos, envelhecemos, andamos na Linha do Tempo, e também experimentamos a repetição do Tempo Circular: todo ano tem Carnaval, Dia das Mães, Festa Junina, Natal; e ciclos maiores, como Copa do Mundo, eleições. Temos "fórmulas" que regulam a vida de cada um de nós:

O "tempo atemporal" que buscamos reviver na repetição dos ritos (sempre a mesma coisa, embora nunca seja igual...) é próprio das mitologias, da literatura de ficção. É como o começo de "Memórias de um Sargento de Milícias" que se passa no Rio de D.João VI: "Era no tempo do Rei..." . Não sabemos exatamente em que ano é, se D.João ainda era Príncipe Regente, ou se estava prestes a deixar o Brasil. Era no tempo do Rei. De vez em quando o entrevemos no palácio, na missa, no beija-mão. São as coisas que sempre aconteciam naquele tempo. "Sempre aconteciam..." As coisas que costuam acontecer, é disto que é feita a "história atemporal".

Mesmo eventos únicos, como o nascimento e a coroação do rei, repetem padrões cristalizados pelas fórmulas sagradas e consagradas, pelos costumes.

Os antropólogos estudam uma sociedade evidenciando suas regras, os padrões de comportamento, os fatores de coesão, suas leis expressas ou não ditas, os tabus etc. Os antropólogos mais antigos faziam descrições quantitativas e matemáticas, segundo o padrão de ciência exata que imperava (pois é, precisamos de uma antropologia da antropologia... * ver PS abaixo). Com o passar do tempo, os estudiosos passam a lançar mão de outros recursos e analogias, "ferramentas intelectuais" como se diz. Gilberto Freyre é um exemplo de antropólogo bastante livre na escolha de métodos de abordagem: para entender um fenômeno social, ele recorre à influência geológica e geográfica, às migrações dos povos, às especialidades profissionais, aos cuidados com higiene e saúde, à alimentação, à vida íntima e sexual, aos cuidados com as crianças...

Enquanto escrevia o parágrafo acima, pensei: não estou confundindo o objeto de estudo com o método? Ora, esta ambiguidade aparece no próprio Freyre e, creio, é próprio da inteligência humana aberta. Quando Freyre menciona um prato da culinária, aquilo é um exemplo que sustenta uma hipótese, e também o meio pelo qual ele busca alcançar compreensão dos valores daquela sociedade. "Casa Grande & Senzala" é um livro que resume 300 anos de Brasil-colônia, não de história, mas de vida - e vida é assim mesmo, feita de coisas grandes e pequenas que acontecem, que "vão acontecendo" - para usar uma forma verbal em que o tempo não caminha apenas inexoravelmente para frente, mas circula, volta ao mesmo lugar de novo e de novo e de novo, como as fases lunares e as estações do ano.

Quando li "As Barbas do Imperador", decidi manter a estrutura do livro tal e qual. Eu poderia ter extraído dele apenas a vida de d.Pedro II, e tentado fazer algo mais parecido com "D. João Carioca". Mas eu quis, e achei viável, que o "Barbas" em HQ tivesse a mesma cara antropológica do original.

E pedi à Lília que me indicasse seus "gurus", uma bibliografia básica de autores que ela respeita. Mandou alguns nomes: Clifford Geertz, Levi Strauss, Malinovski, Sahlins, Evans Pritchard. Eu já tinha lido Levi Strauss (Tristes Trópicos), baixei alguns textos de Geertz. Também segui indicações do próprio Barbas, como o estudo de Curt Nimuendaju sobre os Timbiras do Maranhão. Dei também uma lida em alguns manuais de introdução à antropologia geral, mesmo os mais "quadrados" e cientificistas, digamos, justamente para enxergar com nitidez o estilo de abordagem que caracteriza Lília Schwarcz e a linhagem de pesquisadores na qual se insere, linhagem que se destaca do pano de fundo da antropologia clássica pelo uso mais livre de analogias, comparações e metáforas advindas da crítica literária, das artes e espetáculos etc. Basta ver os outros livros da Lília em que o mundo pictórico (a pintura de Taunay, os anúncios de escravos) e os símbolos de cultura (a biblioteca dos reis) são tanto objeto de estudo como pistas e evidências de algo mais, uma lógica por trás dos símbolos.

Quero dizer, não é apenas a adaptação de um livro - de um "texto" - que estou fazendo, também não é só contar um pedaço da História do Brasil - um "objeto" - mas, sobretudo, procuro mostrar esse objeto por meio de uma metodologia ou abordagem específica - um "olhar" amplo que conecta  diferentes campos e realidades.

Trocando em miúdos, "As Barbas do Imperador"  mostra como uma sociedade no Brasil do século XIX se articulava em torno do "mito do Rei", expresso nos símbolos, artes e rituais, nos atos oficiais e na cultura popular, e como D.Pedro II encarnou - e depois rebelou-se, ou tentou ir contra o símbolo - o Rei numa monarquia tropical sem similares.
E eu quero mostrar como esse livro é.

PS - falei acima de "antropologia da antropologia". Podia ser também uma antropologia da sociologia, ou da micro-sociedade acadêmica. Seria preciso primeiro delimitar esse objeto: essa sociedade é definível por um espaço geográfico, como o campus da USP? Ou por uma rede de relações, que se mantém coesa por uma "cultura acadêmica"? - isto me parece melhor. Qual a sua estrutura social, suas camadas, suas regras de ascensão social, os mecanismos de inclusão e exclusão, os comportamentos incentivados e aceitos; as instituições da vida universitária: o vestibular, o trote, a vida no grêmio, as festas, o boteco; os rituais de escrever uma tese, a defesa, a publicação, a construção de um currículo; a relação orientador-orientando, a linha dinástica dos pesquisadores até o fundador da disciplina; a aquisição de um vocabulário acadêmico, as referências culturais pop, os ícones; as relações desta micro-sociedade com o meio circundante, o jornalismo cultural, os grandes eventos intelectuais de massa, o fascínio do canudo, o prestígio do intelectual em meios não-intelectuais...  Isso dá pano pra manga.

Os três últimos presidentes do Brasil foram um sociólogo, um líder sindical e uma burocrata. Isto deve significar alguma coisa...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Lei dos 20% de Quadrinho Nacional - minha opinião

Querido Papai Noel, neste Natal eu quero ganhar uma Lei que gere emprego e renda para todos os quadrinhistas do Brasil.Tambem queria uma ACB forte que mobilizasse e unificasse a categoria permanentemente.De quebra, eu queria que a categoria fosse mais unida e menos individualista.Será que é pedir muito, Papai Noel?… (mensagem de Márcio Baraldi na revista eletrônica O Grito / Papo de Quadrinho)

Participei neste sábado 04/02/2012 do debate sobre o PROJETO DE LEI Nº 6.060-A, DE 2009, parte do evento 28º Prêmio Ângelo Agostini, organizado pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo (AQC-ESP) e que aconteceu no auditório do Instituto Cervantes, em São Paulo.
A lei determina que toda editora que publicar quadrinhos, do conjunto de publicações, 20% no mínimo deverá ser nacional (essa cota será atingida gradualmente em seis anos).
Além disso, alude vagamente a ações que o poder público fará para desenvolver o segmento:

...implementará medidas de apoio e incentivo à produção de histórias em quadrinhos nacionais, tais como, estimular a leitura em sala de aula, e promover eventos e encontros de difusão do mercado editorial de histórias com quadros em sequência voltadas para o público infanto-juvenil.
Art. 6º Os bancos e as agências de fomento federais estabelecerão programas específicos para apoio e financiamento à produção de publicações em quadrinhos de origem nacional, por empresa brasileira, na forma da regulamentação.

De autoria do deputado Vicentinho (PT/SP) e tendo como relator o deputado Rui Costa (PT/BA), a lei dos 20% está praticamente aprovada. Dependerá do aval da presidenta (PT/RS), não vejo nada que possa atrapalhar seu caminho vitorioso, e o cumprimento - da parte restritiva ao editor - não custará nada ao governo. Basta estipular a porcentagem e fiscalizar. A outra parte da lei, o que o governo se obriga a fazer (artigos 5 e 6), é naturalmente expressa em termos imprecisos e sem agentes definidos, e portanto, inverificáveis.

O jornalista Jota Silvestre, organizador do debate, me convidou para debater do lado dos "contra". Junto comigo, o editor Guilherme Kroll, cuja editora (Balão) só publica nacionais, porque gosta e quer publicar nacionais. Sua posição é admirável, porque ele não defende sua própria situação: a lei não lhe causaria nenhum problema, já que ele não quer - por enquanto - publicar HQ estrangeira. Ele avalia a justiça ou injustiça da lei se colocando mentalmente na situação de outros possíveis editores, o que é uma atitude muito rara em nosso meio (o normal é a pessoa pensar em benefício próprio ou do seu grupo).

Guilherme Kroll  - Sou contra imposições governamentais, quaisquer que sejam elas, na linha editorial de um veículo de imprensa (editora). A Balão até hoje só publicou autores nacionais, mas não o fizemos por obrigação, e sim porque gostamos dos projetos. A obrigatoriedade, ao meu ver, seria ruim. (...) Obrigar um veículo de imprensa a publicar algo que não faz parte da sua linha eu acho inaceitável, sejam quadrinhos, sejam clássicos, sejam receitas de bolo. Imagine uma editora estrangeira que pretenda abrir uma filial no Brasil com o único objetivo de publicar quadrinhos do país dela, uma editora japonesa, por exemplo. Qual é a lógica dela ser obrigada a publicar 20% de material brasileiro? Ao meu ver, isso é retrógrado e impositivo. Sou a favor de todos os incentivos possíveis, mas determinar o que alguém vai publicar ou deixar de publicar é f*. (depoimento a Jota Silvestre na revista O Grito / Papo de Quadrinho).
Do outro lado, JAL (presidente da AQC-ESP) e Márcio Baraldi, dois notórios faladores. JAL tem bastante desenvoltura no mundo político-institucional, é cartunista e assessor de imprensa, naturalmente tem um discurso mais técnico e repleto de dados, arredondado há décadas de militância quadrinhística; Baraldi, quadrinhista-camelô-cineasta (*) extrovertido, quando dispara sua metralhadora retórica sindicalista/mano da periferia consegue ocupar com sons todos os espaços.
(*cineasta - exibiu parte do seu documentário sobre o mestre de HQ Rodolfo Zalla, "Ao Mestre com Carinho", feito com surpreendente delicadeza).

Para enfrentá-los ou pelo menos conseguir uma brecha para dar o meu recado, precisei preparar com cuidado meu discurso. Se fosse uma exposição do tipo mesa redonda, eu teria falado durante uns 20 minutos. Mas o Jota preferiu um formato mais dinâmico, e creio que isto foi conseguido :)

Não faltaram insinuações de que eu era "neo-liberal", ou que devo parte da venda dos meus livros a projetos de incentivo do governo (uau, que revelação bombástica!). Sim, acho que deixei clara a diferença entre "incentivo" e "camisa de força" na minha fala (eufemisticamente chamada pelos defensores da lei como "regras", ainda que unilateralmente expostas).
Não sou nem liberal, nem neo (acho que não sou "neo" em coisa nenhuma :). O liberalismo é uma utopia, jamais existiu um mercado 100% livre de interferência do governo - até porque o governo, mesmo em um sistema relativamente liberal, é um grande comprador e devedor, portanto um grande agente econômico. Devemos defender, isto sim, princípios justos em si mesmos, e uma convivência democrática entre interesses antagônicos, e zelar para que jamais um poder se torne muito mais poderoso que os demais e os oprima.
Se quiserem me rotular mais adequadamente, sugiro "anti-fascista", que não cobre tudo o que me define, mas ajuda a entender alguns dos meus posicionamentos.

Vou postar aqui a minha "colinha" de argumentos, não cheguei a usar todos.
Desenvolvi sete linhas argumentativas, e as pessoas que fizeram meu curso de arquétipos na Quanta poderão reconhecer a inspiração planetária invertida (de Saturno a Lua), também como recurso mnemônico.
Sim, este comentário ficou estranho, mas alguns poucos entenderão.
 
1) DEFESA DO PRINCÍPIO GERAL DA LIBERDADE DE ESCOLHA
É um apelo para que as pessoas pensem, em primeiro lugar, no direito de expressão e de escolha do ser humano e do cidadão, e não apenas no benefício que a lei trará a um segmento em detrimento da liberdade de outro. Não posso defender uma lei injusta, mesmo que não me atinja.
Isto exige um mínimo de abstração, para sair de sua situação imediata e mediar nos direitos e deveres do homem, acima das necessidades do grupo profissional.
Devemos defender a escolha livre e responsável em geral, tanto a do artista em escolher livremente sua profissão (quem o obrigou a ser quadrinhista?), como a do editor em definir sua linha editorial como bem entender (e estar sujeito a sucessos e fracassos em virtude de suas escolhas).

2) ALERTA CONTRA O NACIONALISMO E O CONTROLE ESTATAL DO CONTEÚDOVejo nesta lei um germe de nacionalismos mais radicais no futuro, em que algumas HQs serão consideradas mais brasileiras que outras - nesta lei já se menciona isso, com relação a projetos subvencionados (§1º Na seleção dos projetos, será dada preferência àqueles de temática relacionada com a cultura brasileira).
Os desenhistas que curtem super-heróis nacionais, como meu amigo Eduardo Manzano, poderão ter uma surpresa um dia, se uma comissão de estudos decretar que "super-herói" é um formato imperialista e que um quadrinho brasileiro autêntico só pode ter anti-heróis. A ver...

3) CRÍTICA DA LUTA CLASSISTA; A FORÇA NÃO ESTÁ NA UNIÃO, MAS NO ESFORÇO PESSOAL PARA DOMINAR UMA ARTE
Os defensores da lei alegam que o desenhista nacional não pode, sozinho, enfrentar a invasão do quadrinho americano, imperialista, com seu marketing poderoso e milionário. Então a solução seria unir os desenhistas fracos e impotentes para, unidos, mostrar a sua força. Esta força, porém, é superficial e exterior - vem de uma ligação política, que não aumenta nem diminui a qualidade do artista. A força do artista, na verdade, se desenvolve na batalha solitária para adquirir maestria na sua arte - é o esforço, a persistência, que dão fibra ao quadrinhista e enchem o seu peito de coragem, não a participação nominal em um sindicato. Ele deve ser mais exigente de si mesmo do que o mercado, o mercado só exige dele os padrões de qualidade moderno; o desenhista de quadrinhos deve medir seu desenvolvimento comparando-se aos grandes mestres do passado, e lutar para ser digno deles, não do mercado, que segue a moda e os gostos cada vez mais toscos da massa (vide BBB).
Uma vez que a pessoa consegue ter dentro de si padrões muito melhores do que a exigência profissional mediana, se desenvolverá acima da média e estará, naturalmente, em condições muito melhores de oferecer e negociar o seu trabalho, sem precisar da muleta das associações políticas e leis protecionistas.

4) ELOGIO AO MÉRITO INDIVIDUAL E ORGULHO PROFISSIONAL
Este tópico nasce naturalmente do anterior. Hoje em dia o valor do mérito pessoal está esquecido.
É muito melhor ter "chegado lá" por seus próprios meios, do que ter sido beneficiado por uma lei de cotas. Faz falta aquele sentimento de orgulho, de dignidade própria, de conseguir vencer sem recolher a esmolas e atalhos. Ou ser derrotado dignamente, perder e sacudir a poeira faz parte da vida. Mas como ensinar este sentimento? Ele parece morto, no Brasil de hoje, viciado pelo Estado-babá.
Precisamos lembra de Luiz Gonzaga, naquela música que diz que a esmola vicia o cidadão; ou o velho Sinatra: quando o fim estiver próximo, será muito mais emocionante poder cantar "I did it my waaaaay!"

5) A UNIÃO ARTISTA-EDITOR DEVE SER LIVRE DE CONSTRANGIMENTO EXTERNOÉ como um casamento, uma união complementar que pode ser loga e feliz. Ora, esta união não pode começar com uma obrigação imposta por lei; isto é semelhante a um casamento à indiana, combinado com os pais da noiva... O "sim" só vale se a noiva for livre para dizer "não". E essas "discussões sobre o mercado de quadrinhos" começam com uma enorme desconfiança em relação ao editor, minando desde cedo um possível bom relacionamento. O autor deve seduzir o editor; conhecer sua linha editorial e tornando-se atraente para ele. "Lutar" (se por lutar se entende pedir ao Poder Público que lute em seu lugar) é um péssimo começo.

6) AUTOR E EDITOR: AMBOS SÃO COMERCIANTES, AMBOS SÃO CRIADORESÉ comum dizer: o editor quer fazer dinheiro, o artista quer viver do seu trabalho... Há um preconceito, uma pecha de "capitalista" no editor que permeia esses debates. Ora, o editor não pode estar nesse negócio se não for um bom leitor e fã de quadrinhos. Procure um editor que fale a sua linguagem. Por sua vez, aprenda com ele as demandas que ele tem que atender para produzir e distribuir o gibi ou o livro em HQ: procure tornar-se um pouco editor, ver o mercado como ele vê.
Os quadrinho-sindicalistas falam muito em mercado, mas em termos financeiros, numéricos e impessoais; o editor tem uma visão mais diversificada, realista e humana. Seu negócio exige a satisfação de numerosos públicos, interação física com os fatores industriais, conhecimento de arte e design, faro comercial e habilidades promocionais. Ou o artista capta um pouco disso, e se torna co-editor de seu editor, ou que passe a admirar e respeitar a complexidade do trabalho de seu parceiro.

7)  O EDITOR COMO AMIGO, MEDIADOR, PROTETOR E PARTEIRO O autor, para realizar-se, precisa do editor (mesmo que resolva se editar, precisa criar um editor em si mesmo, como fazia Marcatti, mas o ideal é que seja um outro). Precisa de uma relação de confiança mútua, um precisa apostar no outro. O editor protege o artista do confronto direto com o mercado, com o mundo às vezes rude da indústria gráfica, contra certas armadilhas da mídia e da exposição pública. Ajuda sua obra a nascer.

Faço votos de que meus colegas quadrinhistas um dia conquistem um relacionamento longo e próspero com um editor amigo e de confiança, o que tem mais chance de acontecer depois que se dedicarem, com garra e sinceridade, a conquistar a si mesmos e os segredos da sua arte.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

na corte do Rei-Sol


Esta ilustração abre o capítulo "como ser nobre no Brasil", que corresponde ao capítulo 8 do "Barbas", escrito por Lília Schwarcz em parceria com Ângela Marques da Costa.
Abaixo, vocês podem ver o layout a lápis com as legendas aplicadas.
(não custa lembrar, clique com o botão direito do mouse e escolha a opção "abrir em outra janela", é melhor do que apenas clicar para abrir).


O layout foi inspirado na imagem abaixo, e eu não me lembrava mais de que quadro era este detalhe.
Depois de muito procurar, localizei o quadro "Recepção do Grande Condé em Versailles", de Jean-Léon Gérome, pintado em 1878, que está no museu d'Orsay.

Eu não precisava deste momento histórico específico; só queria um símbolo da corte do rei Luís XIV - com sua cenografia cheia de ouros e mármores, tão magnificente, tão esplendorosa, que chega a ser bizarra, brega. A decoração e as roupas do rei-sol marcam o que parecia ser o ápice da nobreza, mas que é na verdade a decadência dos nobres - é a nobreza completamente submetida ao chefe de Estado absolutista, já bem distante de sua natureza guerreira original, como um mastim submetido a séculos de seleção artificial até se tornar um poodle de madame.




Como as cópias que encontrei deste quadro eram em baixa resolução, procurei esse ambiente na internet e em guias do palácio de Versailles. Mas não havia nada parecido...
Procurava no Google: Versailles, staircase (escadaria), Louis XIV, Louis 14...

Enfim descobri: Escalier des Ambassadeurs (Escada dos Embaixadores), demolida em 1752, numa reforma feita por Luís XV. O quadro foi pintado mais de 100 anos depois, o pintor baseou-se em gravuras.
Encontrei algumas reconstituições, desenhos e várias fotografias de uma maquete exposta no Louvre. Também tinha no site do Louvre uma maquete virtual, mas não consegui rodar, deve ser um programa antigo.



Não fui muito fiel, peguei algumas coisas do quadro de Gérome, outras da maquete, simplifiquei um pouco.
Pesquisei não para obter fidelidade, mas para enxergar melhor, entender melhor os detalhes.
Como o par de peixes dourados (ornamentos típicos de arquitetura chamados "delfins", mas têm escamas, são golfinhos fantasiosos) ao lado do busto do rei. É divertido desenhar essas extravagâncias.

De qualquer forma, só queria mesmo uma moldura espalhafatosa para o "rei-sol".