imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

domingo, 27 de novembro de 2011

Enfim, d. Pedro II por ele mesmo

(para ver ampliado, clique com o botão direito e escolha "abrir link em uma nova janela"; porque agora, clicando na ilustração, você vai ver menor do que está vendo agora...)

Esta é uma página muito especial.
Até agora (estamos na página 30, de um HQ que terá 112 páginas), o imperador nada mais fez que cumprir os ritos da monarquia e de posar como símbolo vivo da jovem nação americana. Foi educado para ser rei, emancipado, coroado e casado com uma princesa napolitana.
O que pensava, o que queria esse jovem formal, reservado e CDF? Ele era um mistério, e quase um figurante num espetáculo em que ele era o ator principal.
Agora, adulto jovem, começa a botar as manguinhas de fora.

Vemos aí o imperador se recolher aos seus aposentos, pegar um livro - o poema épico "Confederação dos Tamoios", composto em sua homenagem - e fazer algumas anotações do que será seu projeto cultural pessoal, uma das marcas mais fortes de seu reinado: patrocinar estudos e obras artísticas tendo como tema o indígena. Vai começar uma tremenda indiomania, até os novos barões e viscondes adotarão nomes exóticos como Piabuçu, Itapororoca e Jurumirim, "conferindo uma qualidade indígena e tropical aos velhos títulos medievais" (Lília Schwarcz, ABDI, página 178).

A cena tem o ar de uma descoberta, de um estalo, como se o imperador tivesse descoberto, naquele momento, o seu papel, uma maneira de juntar seu rico mundo interior e as necessidades do país que lhe deram para reinar. Não aconteceu necessariamente assim, claro - esta é uma maneira visual de apresentar ao leitor uma tomada de posição, a sua guinada.
No capítulo seguinte ficará mais claro como d.Pedro fará isso na prática. Basta dizer que ele ia na Câmara dos Deputados apenas duas vezes por ano e a contragosto, numa cerimônia a que não podia faltar, com seu manto real e sua murça de papos de tucano, e compareceu a mais de 500 sessões quinzenais no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, até a proclamação da República. O IHGB era o seu xodó, ponto de encontro da intelectualidade do império em torno de seu mecenas, misto de Marco Aurélio com Péricles tupiniquim.

 Este é o núcleo da sua personalidade, que se expandirá em obras.
Aqui ele será de fato rei - comandará, agirá estrategicamente, combaterá adversários - e por incrível que pareça, entre eles um dos mais legítimos indigenistas, José de Alencar (biografado por Lira Neto sob a alcunha de "o inimigo do Rei").

D.Pedro deixou anotado em seu diário que, por ele, teria preferido ser um professor, ou um estudioso das várias matérias a que se dedicou, línguas, mineralogia ou as inovações da ciência.
O mecenato, porém, será a sua "praia", onde ele poderá conciliar os dois mundos em que viveu, o mundo do saber, e a política, entendida por ele, só por ele, como "a arte do bem comum". Todo mundo sabia, e mais que todos as raposas políticas que disputavam os postos do gabinete, os Luzias e Saquaremas, que política é a arte da sobrevivência à sombra do Poder e de puxar o tapete do adversário. Mas para d.Pedro, o que estava em jogo realmente era a construção do país. Talvez para mais alguns também, Mauá, Nabuco.

Mas o que tem o índio a ver com essa história?

É o tema do capítulo seguinte da HQ (capítulo 7 de ABDI). Os estudos e artes patrocinados por d.Pedro floresceram sob a inspiração do movimento do Romantismo.
Na Europa, originalmente, o Romantismo é uma reação contra a razão iluminista e os valores da civilização européia de maneira geral, chegando às vezes à revolta anti-cristã. Exaltava o indivíduo, a liberdade, o frenesi de uma vida curta e as mortes gloriosas, a vida errante e o lugares longínquos, como o "Oriente".
Nos Estados Unidos, um país que se industrializava com rapidez, a onda romântica gerou Edgar Allan Poe e Herman Melville, autores sombrios em que ainda se reconhece a inspiração original, rebelde e luciferina.

No Brasil, ah, no Brasil... é curioso com as coisas se adaptam por aqui.
O Romantismo chegou, foi importado por jovens poetas arrebatados, com ânsia de imitar a nostalgia e desejo de liberdade que angustiava os românticos europeus. Mas esta terra ainda era primitiva e exótica ela mesma! Aqui as coisas estavam para ser fundadas.
Então, algo do Romantismo se conservou, mas, se olharmos bem, aqui ele trai os seus modelos.
Em vez de rebeldia individual, o que temos é um projeto oficial, de fundar uma civilização, filiando-a em antepassados indígenas, num misto de pesquisa científica e idealização dos tempos coloniais.

O poema "Confederação dos Tamoios" de Gonçalves de Magalhães é bem curioso, em sua mistura de paganismo e religiosidade cristã: ao mesmo tempo em que louva a fé cristã, começa o poema pedindo bênção e inspiração ao Sol e aos gênios dos bosques...
"Ó Sol, hoje me inflama a mente ousada / que asas desprende pra mais altos vôos."
e logo depois:
"Tu só, religião sublime e santa / do Deus por noso amor martirizado / tu só consolador óleo verteste / nos ulcerados corações dos índios"
O grito de liberdade romântico encontra seu herói escravizado:  o índio:
"a escravidão!... ó céus! Quando do mundo / tão grande crime sumirá pra sempre? Maus, sim, nossos pais foram pra com eles / Torpe ambição, infame crueldade / os esforços mil vezes deslustraram / dos primeiros colonos lusitanos."

Num pais ainda no século XIX escravocrata, e sobretudo da escravidão africana, salta aos olhos que a literatura cria um passado em que os personagens principais são o branco e o índio.
Numa primeira leitura, é uma sociedade hipócrita que, na arte, condena uma escravidão e, na realidade, pratica outra... mas as coisas não são tão simples assim.
A escravidão, tão ou mais que uma instituição econômica, era um dado cultural: estava entranhada no modo de vida do povo brasileiro, praticada por todos os segmentos sociais (ricos, pobres, escravos libertos), ocupando todos os espaços fisicos e, principalmente, delimitando os horizontes mentais - como o Brasil pensa a si mesmo, o que quer, o que é.
É possível que o nosso romantismo tenha servido também para incutir, primeiro, o horror teórico, "poético" à escravidão indígena, que se estendeu à escravidão geral da qual a africana faz parte, e essa literatura libertária embalou os abolicionistas da geração seguinte. Voltaremos ao tema da escravidão em outro post.

Mais adiante - desculpem, não li o poema inteiro; agora até deu vontade, mas vou pinçar apenas o que topei numa "folheada digital" rápida - ahá, eis aqui um Romantismo anticristão (ou anticatólico, é um francês calvinista que debate com Anchieta, :
"Promete-vos Anchieta doutrinar-vos / e instruir-vos na lei de Cristo / mas quem de vós lhe pede esse serviço / que caro pagareis com a liberdade? (...) que outro bem estes padres vos prometem? A civilização?... fatal presente"
(é bem de Rousseau esta conversa; em Rousseau, já no limiar do iluminismo, a razão é algo identificado à natureza - idealizada, claro - e não à civilização, que "corrompe o homem"; este calvinista de Magalhães é um francês republicano...)

e mais adiante:
"Longe dessas civilizações / somos todos iguais. Ninguém de fome / e fatigado morre no asilo / a par do rico, que no fausto vive / à custa do suor da pobre gente! / Aqui o que Deus dá pertence a todos / aqui não há tiranos nem escravos / não há ferros, prisões, não há fogueiras / que eles do Santo Ofício denominam / onde frades infames, furibundos / queimam por coisas vãs as criaturas / homens, mulheres, velhos e crianças! / Ó, vergonha da Europa! e Reis e Papas / protegem essa infâmia! Ó crime horrendo! / Ó impostura atroz! Filhos dos bosques, / homens da natureza! Deus vos livre / da civilização..."

O pau na Inquisição deve ter agradado ao imperador - maçom, e sagrado por um bispo...

Depois da poesia épica evocar um passado indígena socialista onde "o que Deus dá pertence a todos", Gonçalves acrescenta, ao final do livro, uma parte "científica", com notas e glossário:
"Guaraciaba quer dizer: cabelo de sol. Guaracy, sol, e aba, cabelo. Nome de uma espécie de colibri."

Poesia e ciência caminharão de braços dados, no reinado de d.Pedro II.

Acima, vemos o esboço, o layout da página como apresentei à Lília. Não mudei quase nada, mas tudo foi redesenhado.

A página de "A confederação dos Tamoios" no quadro 04 não é a mesma em que d.Pedro fez a anotação de verdade - segundo ABDI está na página 11 da edição de 1857 do imperador. Como não tinha foto disso, improvisei com uma imagem de outra edição, a de Coimbra de 1864. A capa no quadro 03 está certa.
Na verdade, eu poderia ter feito só umas linhas e garranchos para ilustrar o livro e o manuscrito do imperador. Afinal, tudo isso que está aí é só produção de cenário e "contra-regras" - o cortinado, a estante e a escrivaninha, servem para compor um ambiente onde a ação mais importante se desenrola, de fato, no espírito de d.Pedro.
Por isso a iluminação intimista, de alcova, em oposição ao primeiro quadro, do baile, cena pública e social, onde ele era um "d.Pedro para os outros". Aqui, na intimidade, partilhamos o quarto ou gabinete de d.Pedro II em que ele se sente mais à vontade para ser ele mesmo, para si.
Mas, ao mesmo tempo, ilustra o instante em que o imperador descobre como fazer esse rico mundo interior exteriorizar-se - virar projeto de vida e de país, patrocínio, plano de governo e realidade. D.Pedro governará pela cultura e pela ciência.

Foi-se o tempo em que ele era um jovem estudioso e tímido, como testemunhará o príncipe de Joinville, seu futuro cunhado, em sua segunda visita ao Brasil.  Um sagitariano tímido, realmente não combinava...

De agora em diante, cada vez com mais segurança, ele discutirá cada um dos inúmeros campos investigados por sua imensa curiosidade; bancará pesquisas, obras literárias, quadros, espetáculos; se corresponderá com sábios e literatos do exterior, fará viagens, encantará o estrangeiro como um charmoso "rei-cidadão" constitucional e quase republicano; e compensará as obrigações do cargo de imperador com a distração de ser, de vez em quando, "mestre-escola", como um Professor Raimundo sabatinando alunos de escolas públicas.

É isto o que vai acontecer, nas 82 páginas que restam de "As Barbas do Ilustrador" em quadrinhos.

PS: estou devendo dois posts, um da viagem a Portugal (Amadora BD) e outro sobre Salvador (livro "Jorge Amado de todas as cores). Aconteceu o que eu temia: já estou novamente imerso no dia-a-dia. Vamos ver se encontro um tempo para pelo menos registrar alguns aspectos desses econtros tão prazeirosos quanto breves. abs,sp

2 comentários:

  1. Não seria interessante colocar textos como esse também no próprio álbum? Ou ficaria redundante? De qualquer modo, fica a sugestão. A saga continua! Um abraço, Spacca.

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  2. Obrigado, Érico. Bem, o álbum ficaria gigante. Além da HQ, ainda teremos os complementos habituais - uma cronologia, indicações bibliográficas, making of.
    Não acho redundante, mas, no tocante às minhas "estratégias" de como quadrinizar, são tantas as tomadas de decisão, e os truques e macetes, que na verdade dariam um conteúdo maior do que o próprio livro.
    E com relação a análises da época e do material, temas históricos, literários e outros, tem gente que só faz com isso na vida e faria melhor que eu. Eu me permito, aqui, porque estou no meu blog e entre amigos...
    abraço grande, sp

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