imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Meu Canini Favorito

 
(fonte das páginas reproduzidas: InDucks - reproduzido sem a mais mínima intenção de utilização comercial, sejam compreensíveis por favor)
 
Com  recente falecimento do mestre Renato Canini (1936-2013), foi bastante lembrada sua versão do Zé Carioca, certamente a encarnação mais brasileira do personagem de Disney, criado na onda da política da boa-vizinhança que os Estados Unidos conduziam durante a Segunda Guerra Mundial em filmes tais como "Saludos Amigos" e "Você já foi à Bahia?", para evitar que seus parceiros sul-americanos resolvessem arrastar a asa pais para Hitler do que Franklyn Roosevelt.

O Zé original foi desenvolvido com consultoria brasileira, ainda que contaminada por um "South American Way", e guardava um sabor de malandro carioca já glamourizado, meio hollywoodiano, meio Cassino da Urca. A Rosinha nos primeiros quadrinhos usava um turbante à la Carmem Miranda.

O papagaio apareceu no Brasil em quadrinhos já no primeiro gibi do Pato Donald, e conservou até os anos 60 seu terninho, guarda-chuva e palheta. Ele aparecia às vezes de camisa curta, porque os artistas brasileiros pegavam HQs de Barks e Paul Murry, trocando Donald e sobrinhos, e Mickey e sobrinhos, por Zé Carioca e sobrinhos... e o Rio se parecia cada vez mais com Patópolis.

Quando comecei a ler Zé Carioca, ele já estava nas mãos de Renato Canini, um dos artistas que ilustravam a famosa Recreio:



Renato, sem sair do seu Rio Grande do Sul, foi o responsável pelo traço solto, bidimensional e cartunesco dessa fase do Zé, e por roteiros muito engraçados e "brejeiros" (palavra engraçada, virá de brejo? Sempre é usada para se referir a algo brasileiramente maroto, malandrinho).

Este é meu exemplo predileto, que muitas vezes evoquei de memória, sem possuir mais a revista nem lembrar claramente. Mas graças ao milagre da internet e ao esforço do pessoal que faz o Inducks, localizei hoje a danada: minha HQ favorita do Zé-Canini se chamava "Os urubuservadores", saiu na Zé Carioca n. 1131 de 13 de julho de 1973.

Havia um jogo chamado Loteria Esportiva, em que o cidadão tinha que acertar o resultado de 13 jogos, assinalando três colunas, um, dois e coluna do meio (empate). O Zé ficava dias vendo urubus pousarem sobre três barracos no Morro do Urubu, para usar os palpites para completar a cartela; as apostas se encerravam na quinta e o resultado saía sábado. E a gente esperava o resultado no domingo à noite, anunciado pela Zebrinha do Fantástico ("xi! olha eu aí! Deu zeeebra...").

O trocadilho "urubusservar" também era comum, as pessoas diziam "estou só urubuservando" - que é uma junção muito interessante do verbo "observar" com a atitude própria do urubu, que fica ali "urubuservando" como quem não quer nada um bicho prestes a morrer, para começar a refeição.

Essa história é muito legal. E reparem na roupa da Rosinha, camisa amarrada deixando o umbigo à mostra, a calça boca-de-sino; como observou o amigo Daniel Bueno, seria curioso vê-la assim caminhando pelas ruas dos anos 70 "leve e solta".ao lado da Tina e do Rolo,

(escaneamentos feitos pelo InDucks, perdoem a definição não muito boa, já estavam assim...)

Essa época devia ser uma das mais soltas do Zé por Canini. Ele já vinha fazendo desde 71, estava dominando o personagem, fazendo o que queria, às vezes ilustrando seus roteiros e outras desenhando histórias de Ivan Saidemberg, Alberto Maduar, Júlio de Andrade e outros; e também é uma fase em que ele ainda não havia sido advertido pelos diretores da Abril de que o pessoal da matriz estava implicando com seu traço. Já no final, antes da proibição, Canini estava se esforçando para desenhar o Zé dentro dos cânones Disney. Até que em 1978 Canini foi afastado de vez da função de desenhar o papagaio, mas continuou fazendo roteiros (vejam abaixo o morro escorado por um bambu, numa HQ de 77, e uma HQ ilustrada pelo excelente Roberto Fukue, o Zé mais tridimensional, menos cartum, mais Disney, e com uma casa que poderia estar num subúrbio de Patópolis).




Também consegui localizar a notícia que li então, no suplemento Folhetim da Folha de S.Paulo, reclamando da mudança do titular do papagaio. Encontrei no Acervo Folha, é de 08 de janeiro de 1978, e achei também uma outra, de autoria do cartunista Jota, que traz a marca da bronca anti-imperialista de que todos nós estávamos muito imbuídos, naqueles tempos de fim de governo Geisel, já com abertura para fazer campanha pela Abertura.


 
fonte: Acervo Folha


Jota argumentava que chamar o Zé do Canini de "genuinamente nacional seria tão falso quanto dizer que a indústria automobilística instalada no Brasil era brasileira". Faz sentido; mas há um milagre nisso tudo, de um personagem gringo ter sido tão bem climatizado por um gaucho evangélico de ascendência italiano, que não conhecia o Rio.

Essas coisas são assim mesmo. Existe uma "brasilidade" reconhecível e que pode ser captada e transmitida por artistas, mas ela nem sempre (ou raramente) resulta do que nasce e cresce somente dentro das nossas fronteiras, e menos ainda de projetos nacionalistas ou nacionalizantes, guiados por estranhos ideais de pureza. O primeiro jornal brasileiro era publicado em Londres por Hipólito da Costa, mezzo brasileiro mezzo uruguaio; as melhores imagens do Brasil império foram feitas pelo francês Debret e pelo alemão Rugendas; ninguém retratou melhor o samba carioca do que o italiano Lan e o candomblé que o argentino Carybé; o can-can mais famoso da França é obra do austríaco Offenbach; o francês Júlio Verne criou aventuras com franceses, ingleses, russos, chineses e até brasileiros; e excelentes westerns foram feitos pelo italiano Sergio Leone e pelos franceses Charlier e Giraud/Moebius...
(Não é que não tenhamos cultura própria: ter raízes em outras culturas é próprio do fenômeno cultural. Quem acha que uma coisa é menos brasileira por vir de fora não pensou direito no assunto e repete chavões nacionalistas).

Como caricaturista, Canini fez o Zé mais Carioca que já veio a existir, sintetizando nele o cartum que circulava no Pasquim e a fala das ruas e dos programas de TV, o Brasil que eu sei que existiu por que vi.

E deixo para outra ocasião para falar do Kaktus Kid, dr. Fraud e do pito que tomei dele, por causas das histórias religiosas que fiz na Níquel - pito bem merecido, aliás, como tive a chance de dizer a ele recentemente em São Paulo.
Vá com Deus, Canini!
abração do Spacca