imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Lei dos 20% de Quadrinho Nacional - minha opinião

Querido Papai Noel, neste Natal eu quero ganhar uma Lei que gere emprego e renda para todos os quadrinhistas do Brasil.Tambem queria uma ACB forte que mobilizasse e unificasse a categoria permanentemente.De quebra, eu queria que a categoria fosse mais unida e menos individualista.Será que é pedir muito, Papai Noel?… (mensagem de Márcio Baraldi na revista eletrônica O Grito / Papo de Quadrinho)

Participei neste sábado 04/02/2012 do debate sobre o PROJETO DE LEI Nº 6.060-A, DE 2009, parte do evento 28º Prêmio Ângelo Agostini, organizado pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo (AQC-ESP) e que aconteceu no auditório do Instituto Cervantes, em São Paulo.
A lei determina que toda editora que publicar quadrinhos, do conjunto de publicações, 20% no mínimo deverá ser nacional (essa cota será atingida gradualmente em seis anos).
Além disso, alude vagamente a ações que o poder público fará para desenvolver o segmento:

...implementará medidas de apoio e incentivo à produção de histórias em quadrinhos nacionais, tais como, estimular a leitura em sala de aula, e promover eventos e encontros de difusão do mercado editorial de histórias com quadros em sequência voltadas para o público infanto-juvenil.
Art. 6º Os bancos e as agências de fomento federais estabelecerão programas específicos para apoio e financiamento à produção de publicações em quadrinhos de origem nacional, por empresa brasileira, na forma da regulamentação.

De autoria do deputado Vicentinho (PT/SP) e tendo como relator o deputado Rui Costa (PT/BA), a lei dos 20% está praticamente aprovada. Dependerá do aval da presidenta (PT/RS), não vejo nada que possa atrapalhar seu caminho vitorioso, e o cumprimento - da parte restritiva ao editor - não custará nada ao governo. Basta estipular a porcentagem e fiscalizar. A outra parte da lei, o que o governo se obriga a fazer (artigos 5 e 6), é naturalmente expressa em termos imprecisos e sem agentes definidos, e portanto, inverificáveis.

O jornalista Jota Silvestre, organizador do debate, me convidou para debater do lado dos "contra". Junto comigo, o editor Guilherme Kroll, cuja editora (Balão) só publica nacionais, porque gosta e quer publicar nacionais. Sua posição é admirável, porque ele não defende sua própria situação: a lei não lhe causaria nenhum problema, já que ele não quer - por enquanto - publicar HQ estrangeira. Ele avalia a justiça ou injustiça da lei se colocando mentalmente na situação de outros possíveis editores, o que é uma atitude muito rara em nosso meio (o normal é a pessoa pensar em benefício próprio ou do seu grupo).

Guilherme Kroll  - Sou contra imposições governamentais, quaisquer que sejam elas, na linha editorial de um veículo de imprensa (editora). A Balão até hoje só publicou autores nacionais, mas não o fizemos por obrigação, e sim porque gostamos dos projetos. A obrigatoriedade, ao meu ver, seria ruim. (...) Obrigar um veículo de imprensa a publicar algo que não faz parte da sua linha eu acho inaceitável, sejam quadrinhos, sejam clássicos, sejam receitas de bolo. Imagine uma editora estrangeira que pretenda abrir uma filial no Brasil com o único objetivo de publicar quadrinhos do país dela, uma editora japonesa, por exemplo. Qual é a lógica dela ser obrigada a publicar 20% de material brasileiro? Ao meu ver, isso é retrógrado e impositivo. Sou a favor de todos os incentivos possíveis, mas determinar o que alguém vai publicar ou deixar de publicar é f*. (depoimento a Jota Silvestre na revista O Grito / Papo de Quadrinho).
Do outro lado, JAL (presidente da AQC-ESP) e Márcio Baraldi, dois notórios faladores. JAL tem bastante desenvoltura no mundo político-institucional, é cartunista e assessor de imprensa, naturalmente tem um discurso mais técnico e repleto de dados, arredondado há décadas de militância quadrinhística; Baraldi, quadrinhista-camelô-cineasta (*) extrovertido, quando dispara sua metralhadora retórica sindicalista/mano da periferia consegue ocupar com sons todos os espaços.
(*cineasta - exibiu parte do seu documentário sobre o mestre de HQ Rodolfo Zalla, "Ao Mestre com Carinho", feito com surpreendente delicadeza).

Para enfrentá-los ou pelo menos conseguir uma brecha para dar o meu recado, precisei preparar com cuidado meu discurso. Se fosse uma exposição do tipo mesa redonda, eu teria falado durante uns 20 minutos. Mas o Jota preferiu um formato mais dinâmico, e creio que isto foi conseguido :)

Não faltaram insinuações de que eu era "neo-liberal", ou que devo parte da venda dos meus livros a projetos de incentivo do governo (uau, que revelação bombástica!). Sim, acho que deixei clara a diferença entre "incentivo" e "camisa de força" na minha fala (eufemisticamente chamada pelos defensores da lei como "regras", ainda que unilateralmente expostas).
Não sou nem liberal, nem neo (acho que não sou "neo" em coisa nenhuma :). O liberalismo é uma utopia, jamais existiu um mercado 100% livre de interferência do governo - até porque o governo, mesmo em um sistema relativamente liberal, é um grande comprador e devedor, portanto um grande agente econômico. Devemos defender, isto sim, princípios justos em si mesmos, e uma convivência democrática entre interesses antagônicos, e zelar para que jamais um poder se torne muito mais poderoso que os demais e os oprima.
Se quiserem me rotular mais adequadamente, sugiro "anti-fascista", que não cobre tudo o que me define, mas ajuda a entender alguns dos meus posicionamentos.

Vou postar aqui a minha "colinha" de argumentos, não cheguei a usar todos.
Desenvolvi sete linhas argumentativas, e as pessoas que fizeram meu curso de arquétipos na Quanta poderão reconhecer a inspiração planetária invertida (de Saturno a Lua), também como recurso mnemônico.
Sim, este comentário ficou estranho, mas alguns poucos entenderão.
 
1) DEFESA DO PRINCÍPIO GERAL DA LIBERDADE DE ESCOLHA
É um apelo para que as pessoas pensem, em primeiro lugar, no direito de expressão e de escolha do ser humano e do cidadão, e não apenas no benefício que a lei trará a um segmento em detrimento da liberdade de outro. Não posso defender uma lei injusta, mesmo que não me atinja.
Isto exige um mínimo de abstração, para sair de sua situação imediata e mediar nos direitos e deveres do homem, acima das necessidades do grupo profissional.
Devemos defender a escolha livre e responsável em geral, tanto a do artista em escolher livremente sua profissão (quem o obrigou a ser quadrinhista?), como a do editor em definir sua linha editorial como bem entender (e estar sujeito a sucessos e fracassos em virtude de suas escolhas).

2) ALERTA CONTRA O NACIONALISMO E O CONTROLE ESTATAL DO CONTEÚDOVejo nesta lei um germe de nacionalismos mais radicais no futuro, em que algumas HQs serão consideradas mais brasileiras que outras - nesta lei já se menciona isso, com relação a projetos subvencionados (§1º Na seleção dos projetos, será dada preferência àqueles de temática relacionada com a cultura brasileira).
Os desenhistas que curtem super-heróis nacionais, como meu amigo Eduardo Manzano, poderão ter uma surpresa um dia, se uma comissão de estudos decretar que "super-herói" é um formato imperialista e que um quadrinho brasileiro autêntico só pode ter anti-heróis. A ver...

3) CRÍTICA DA LUTA CLASSISTA; A FORÇA NÃO ESTÁ NA UNIÃO, MAS NO ESFORÇO PESSOAL PARA DOMINAR UMA ARTE
Os defensores da lei alegam que o desenhista nacional não pode, sozinho, enfrentar a invasão do quadrinho americano, imperialista, com seu marketing poderoso e milionário. Então a solução seria unir os desenhistas fracos e impotentes para, unidos, mostrar a sua força. Esta força, porém, é superficial e exterior - vem de uma ligação política, que não aumenta nem diminui a qualidade do artista. A força do artista, na verdade, se desenvolve na batalha solitária para adquirir maestria na sua arte - é o esforço, a persistência, que dão fibra ao quadrinhista e enchem o seu peito de coragem, não a participação nominal em um sindicato. Ele deve ser mais exigente de si mesmo do que o mercado, o mercado só exige dele os padrões de qualidade moderno; o desenhista de quadrinhos deve medir seu desenvolvimento comparando-se aos grandes mestres do passado, e lutar para ser digno deles, não do mercado, que segue a moda e os gostos cada vez mais toscos da massa (vide BBB).
Uma vez que a pessoa consegue ter dentro de si padrões muito melhores do que a exigência profissional mediana, se desenvolverá acima da média e estará, naturalmente, em condições muito melhores de oferecer e negociar o seu trabalho, sem precisar da muleta das associações políticas e leis protecionistas.

4) ELOGIO AO MÉRITO INDIVIDUAL E ORGULHO PROFISSIONAL
Este tópico nasce naturalmente do anterior. Hoje em dia o valor do mérito pessoal está esquecido.
É muito melhor ter "chegado lá" por seus próprios meios, do que ter sido beneficiado por uma lei de cotas. Faz falta aquele sentimento de orgulho, de dignidade própria, de conseguir vencer sem recolher a esmolas e atalhos. Ou ser derrotado dignamente, perder e sacudir a poeira faz parte da vida. Mas como ensinar este sentimento? Ele parece morto, no Brasil de hoje, viciado pelo Estado-babá.
Precisamos lembra de Luiz Gonzaga, naquela música que diz que a esmola vicia o cidadão; ou o velho Sinatra: quando o fim estiver próximo, será muito mais emocionante poder cantar "I did it my waaaaay!"

5) A UNIÃO ARTISTA-EDITOR DEVE SER LIVRE DE CONSTRANGIMENTO EXTERNOÉ como um casamento, uma união complementar que pode ser loga e feliz. Ora, esta união não pode começar com uma obrigação imposta por lei; isto é semelhante a um casamento à indiana, combinado com os pais da noiva... O "sim" só vale se a noiva for livre para dizer "não". E essas "discussões sobre o mercado de quadrinhos" começam com uma enorme desconfiança em relação ao editor, minando desde cedo um possível bom relacionamento. O autor deve seduzir o editor; conhecer sua linha editorial e tornando-se atraente para ele. "Lutar" (se por lutar se entende pedir ao Poder Público que lute em seu lugar) é um péssimo começo.

6) AUTOR E EDITOR: AMBOS SÃO COMERCIANTES, AMBOS SÃO CRIADORESÉ comum dizer: o editor quer fazer dinheiro, o artista quer viver do seu trabalho... Há um preconceito, uma pecha de "capitalista" no editor que permeia esses debates. Ora, o editor não pode estar nesse negócio se não for um bom leitor e fã de quadrinhos. Procure um editor que fale a sua linguagem. Por sua vez, aprenda com ele as demandas que ele tem que atender para produzir e distribuir o gibi ou o livro em HQ: procure tornar-se um pouco editor, ver o mercado como ele vê.
Os quadrinho-sindicalistas falam muito em mercado, mas em termos financeiros, numéricos e impessoais; o editor tem uma visão mais diversificada, realista e humana. Seu negócio exige a satisfação de numerosos públicos, interação física com os fatores industriais, conhecimento de arte e design, faro comercial e habilidades promocionais. Ou o artista capta um pouco disso, e se torna co-editor de seu editor, ou que passe a admirar e respeitar a complexidade do trabalho de seu parceiro.

7)  O EDITOR COMO AMIGO, MEDIADOR, PROTETOR E PARTEIRO O autor, para realizar-se, precisa do editor (mesmo que resolva se editar, precisa criar um editor em si mesmo, como fazia Marcatti, mas o ideal é que seja um outro). Precisa de uma relação de confiança mútua, um precisa apostar no outro. O editor protege o artista do confronto direto com o mercado, com o mundo às vezes rude da indústria gráfica, contra certas armadilhas da mídia e da exposição pública. Ajuda sua obra a nascer.

Faço votos de que meus colegas quadrinhistas um dia conquistem um relacionamento longo e próspero com um editor amigo e de confiança, o que tem mais chance de acontecer depois que se dedicarem, com garra e sinceridade, a conquistar a si mesmos e os segredos da sua arte.